«Eu não risco os livros. faço as anotações à parte e introduzo-as nas páginas enquanto trabalho. Depois retiro-as e atiro-as para o cesto dos papéis.
- Porque não as conserva? - perguntei admirado.
«Repare. Não é qualquer um que escreve. Quer dizer: não o deveria fazer. (...)»
(...)
«Confesso-lhe que algumas reflexões me tentaram, mas um leitor é um viajante através de uma paisagem que se foi fazendo. E é infinita. A árvore foi escrita, e a pedra, e o vento na ramaria, a saudade dessas ramagens e o amor ao qual emprestou essa sombra. E não encontro melhor sina que percorrer, em poucas horas diárias, um tempo humano que, de outro modo, me seria alheio. Não chega uma vida para percorrê-lo. Roubo a Borges metade de uma frase: uma biblioteca é uma porta no tempo.»
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«Foi o primeiro sinal de que alguma coisa não estava bem. Certa tarde, aqui mesmo, onde o senhor está sentado, explicou-me o trabalho que tinha para não juntar numa estante dois autores que se tivessem zangado. Não se atrevia a colocar um livro de Borges ao lado de um de García Lorca, por exemplo, a quem o argentino qualificou de «andaluz profissional». Nem tão-pouco uma obra de Shakespeare junto de outra de Marlow, dado as insidiosas acusações de plágio entre os autores, se bem que isso o obrigasse a não respeitar os números seriados de cada volume da sua colecção. E tão-pouco, naturalmente, um livro de Martin Amis e outro de Julian Barnes, depois que os dois amigos se enfrentaram, ou colocar Vargas Llosa junto de García Márquez.»
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«Um amigo encontrou-o a cear de frente para uma magnífica edição do 'Quixote', pousada num atril, atrás de um copo de vinho branco. Entenda bem, não o que ele segurava na mão, mas aquele que, curiosamente, fora servido ao próprio livro.»
in "A Casa de Papel", Carlos María Dominguéz, ASA. 2 €, no Continente