(resposta ao desafio da Hipatia, menina malandra que me arranjou este ‘31’, á força situado a ‘24’)
Uma coisa que me irrita é inventar. É que há tanta verdade na ficção, tanto pedaço de nadas para rejuvenescer contando-lhe os pormenores saboreados cor a cor, para quê inventar se a ficção é o jogo da verdade do escritor e do leitor, ambos sorrindo no gozo contado duma inócua bica tomada sob um sol especial, um rabo de vento que alça um vestido e enlouquece as glândulas da imaginação, um cão vadio que monta mil ardis para derrubar um caixote de lixo e – quem sabe? irá consegui-lo, ou não? Toda a ficção é viva enquanto duram as páginas que a viram e lêem. Cresci acreditando nisto, e a seguir contarei do porquê desta asserção.
Provavelmente terei ido trabalhar na manhã. Era um sortudo pois tinha o chamado “horário único” que, se me obrigava a madrugar e a almoçar mais tarde, não me privava de dois lautos pequenos-almoços: o primeiro quando o dia acordava e naqueles balcões madrugadores que o ronco da motorizada descobria na cidade que ajustava o dia, o outro tomado à secretária e a meio da manhã, óptima altura para uma sandes de ovo com mostarda em pão de forma e um sumo ‘Crush’, a que se seguia um charro fumado na varanda do escritório a meias com o Luís, e a que quase sempre se seguia o olhar reprovador do velho leão que fazia vestes simultâneas de chefe de escritório e “pai” tolerante e reprovador, ele, o Afonso Quadros, que na sua vasta ninhada contava com exemplares tal qual nós. E por isso sabia, e por isso na sua censura havia bondade.
Ou não terei ido trabalhar, que acontecia. Já morava “sozinho”, que após a motorizada paga foi o passo largo dado na ficção de crescer aceleradamente. Morávamos, eu e o Luís, numa ‘flat’ do outro lado da rua do trabalho e o bom do Alberto, o contínuo mais velho e mais cúmplice, a carapinha branca já a raiar de sabedoria e paciência, ambas reflectidas na sua gestão matrimonial de duas esposas: uma na cidade e consigo e cuidando dele e seus filhos, outra no campo e cuidando da machamba e dos outros tantos filhos além dele quando, sempre que podia, contraía doenças que só se podiam curar no aconchego feiticeiro da aldeia natal, bem, o bom do Alberto bem tocava à campainha da nossa ‘flat’ quando as luzes do escritório se começavam a acender «Carlos! Luís! tá na hora pá!» que, às vezes, algumas vezes, que isto de nos escrevermos dá prerrogativas e nelas está a caprichosa benevolência, algumas vezes o eco era o resmungo e o regresso aos lençóis ainda mal quentes que a noite fora extensa.
Cumpridas como calhou e se pôde as obrigações e os pequenos-almoços, o dia nasce e, conto-vos, os dias africanos têm além da fama o direito ao gozo. Um passeio avenidado entre áleas de acácias e jacarandás em que o ronron da motorizada fazia os meus olhos tão brilhantes como seriam os do Giacomo Agostini se ele, coitado, soubesse dos cantos e curvas da minha cidade como eu que a percorria de lés a lés descobrindo-lhe sempre novos olhares, o deslizar lento pelas fachadas dos cinemas adivinhando qual das matinés tinha o cartaz mais sedutor, ou a sombra que lhe exigia entre o arvoredo nas zonas solitárias da longa praia da marginal, enquanto eu, seu cavaleiro e Agostini ficcionado, redescobria o agrado da areia quente e as águas tépidas, um charro e um céu imensos, às vezes um livro ou por minha conta e risco apenas sonhar.
Era a tarde, o prazer duma visita a um amigo, e mais um charro, dois, três, tantos que no enigmático Vinte e Quatro terão acontecido ou não. Porque calhava ser-se ferreiro com espeto de pau e, nessas tardes, nesse sol que derretia o alcatrão e em que os peitos inalavam “la joie de vivre” mais depressa que o francês o escreveu, por vezes dava-se conta tarde demais que nem eu, nem nós, nem nos ‘grupos’ que mais avizinhávamos havia reservas suficientes para garantir uma noitada e outra e outra, que já se sabe que além dos charros pequeno-almoçados as tardes eram quentes e as noites intermináveis. Talvez, a 24, tivesse combinado um plano, urdido uma trama, planeado uma incursão aos campos distantes, e digo distantes que a cidade era longa e sempre me considerei seu residente, animal doméstico e só bravio quando, quase sempre com as estrelas olhando-me quais olhos vigilantes, tomava os caminhos secretos que abasteciam os sonhos duma geração, lá e então.
Talvez, é provável que na tarde de ‘24’ qualquer assim tenha acontecido, ou não. É, por vezes nada acontece e a esperança fica-se por uma esplanada, o tal rabo de vento ou os esforços do cão vadio e só isso o olhar regista e a mente agiganta na constante reciclagem do quotidiano, essas ficções de realidades. Talvez tenha suspirado por amor pois ainda hoje o faço, noutro hemisfério e duas revoluções depois: o meu céu é o mesmo e só o seu azul se avivou quando subi ao outro lado do mundo. Já as areias escasseiam e são menos calorosas, já a motorizada só ronca quando me sento e olho saudades.
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No dia seguinte soube que estalou uma Revolução na “metrópole” e ainda não percebera quanto esta nova "ficção" iria alterar a minha visão do meu mundo, que tal fumo longínquo anunciava erupções várias no vulcão colonial em que ficcionalmente vivia, mal dele sabendo. Para quê inventar se a meus olhos foi tudo assim, candura e irreverência, cegueira e deslumbre? Uma cúpula de ficção e “joie de vivre” que estalou de gretada, um crescer ficcionado em prazeres mil, tão reais qu’a sua ficção relatada é tão inesgotável como as salinas que tingem as folhas que a contam?