domingo, 5 de janeiro de 2014

Moçambique, 2014



UM SONHO REPEDIDO PARA UMA REALIDADE QUE VAI PARTIR.
ESPERO EU, ESPERAMOS NÓS E ESPERAM ELES.

Pensei que nós, os moçambicanos, estávamos cansados de guerra. De morrer, de conviver com o sangue e com a violência. Pensei que tínhamos aprendido a falar. Uns com os outros. A dizer e a escutar. Pensei que havíamos aprendido a resolver os nossos problemas, sentados, calmamente, dialogando. Pensei muitas coisas que, afinal, acabei por descobrir que não tinha pensado nada.

Por exemplo, que éramos todos fortes, coesos, que sabíamos ouvir e encorajar os que ainda não o eram e que disso também aprendíamos algumas coisas, com humildade, com sapiência. Afinal, são tantas feridas as que ainda não saramos, tantos os mortos que ainda não enterramos, tantas as lágrimas do passado que nos custam substituir por um sorriso hoje. Assim, julguei que, do que a história nos ensinara, algo havia ficado para recordar que não deveríamos repetir, mas, celebrar: as diferenças e o respeito por elas, a tolerância e a dignidade de exercê-la, a moçambicanidade e o chão que a faz.

Sonhei, até, que os meus filhos e os filhos deles pudessem viver construindo o seu País sem que disparassem ou ouvissem o tiro de uma única arma. Se levantavam, levantando. Se plantavam, semeando-se. Mas, como eu sou um sonhador, sou, como posso dizer, um irredutível sonhador, eu acreditei no meu sonho.



Porque... sonhar nunca fez mal.

Lembrei, entre tudo isto, os meus amigos que partiram na guerra, os que tombaram na flor da sua juventude. Como eles gostariam de estar aqui neste momento. Desfrutar da paz, do seu trabalho, da sua família e dos seus anseios. Como gostariam de ir ao cinema, atravessar o País de lés a lés, sem escolta, sem medo de emboscadas, sem guia de marcha, e gozar as praias, as nossas geladérrimas cervejas sem o carapau a vigiá-las. Sei lá, um infinito de coisas que hoje fazemos e eles nunca supuseram que o pudessemos fazer. Dizer, por exemplo, na mesa de um bar: este governo tá-nos a lixar, esses gajos são tramados, pôrra, e não ter aqueles tipos com orelhas grandes e serpenteantes a percorrer o bar todo e a sair disparados como uma gazela a nos denunciar. Eu, cá dentro, sei que se eles estivessem vivos, neste momento, não haveriam de acreditar que foi pelo que eles julgavam impossível que deram tão juvenilmente a sua vida.

Por isso, é que eu pensei que tínhamos aprendido algo. Que o medo dos canhões em redor das cidades, dos distritos e das aldeias, nos ensurdeciam para a música, para a ternura, para amizade, para a fraternidade e o amor. Que os beijos lânguidos às nossas namoradas já não eram mais uma infracção, mas um dever nosso e um direito delas, agora. Que já não era preciso bichar para vestir, lavar e perfumar os nossos bébés, nem as nossas adolescentes mulheres se zangariam por, embora serem diferentes, os nossos bébés parecessem iguais nas cores das suas roupinhas.

Eu, vejam lá só, atrevido que sou nesta coisa de sonhar, até vi sonhados os nossos dirigentes sem o culto da arrogância, da prepotência, do nepotismo, aquelas palavras antigas que ouvíamos antigamente nos obrigatórios comícios da nossa escolaridade e que parecem estão a voltar de novo. Julguei que aquilo de que nos falavam, daquela coisa muito complicada que nos mandavam fazer , chamada como? – deixa lá eu lembrar... ahhhhh, já sei – crítica e auto-crítica, era agora o culto deles, a sua terapia preferida. Julguei, ainda, que tinham aprendido a ouvir, antes mesmo de falar. Mas só sonhei, mais nada. E sonhar, como disse, não faz mal.

Só que neste trabalho dormido e despertado de imaginar coisas, fui acordado de repente, no dia 1, com o pânico a suar no meu angélico sono. Tiros para aqui, tiros para acolá, lojas a arder, carros queimados, crianças a guerrear em vez de brincar, granadas que explodiam no seu gás, pessoas entricheirando-se, outras fugindo, uma confusão que eu gritei a perguntar: Regressei no tempo? Ao pesadelo dos pesadelos? Voltámos à guerra, a lutar contra nós mesmos?

Ainda duvidei. Mas da janela tudo se confirmava nos meus desorbitrados olhos. Então me entristeci, fui para a cama, chamei a minha companheira e disse-lhe: Diz-me que não é verdade. É o que tu estás a ver!, afirmou-me ela. Combalidamente chorei, (des)sonhado e desiludido por constatar que nós nos tínhamos esquecido de que, não há muito tempo, nos havíamos ensinado a falar. A pormos as armas e as baionetas de lado, o sangue, o ódio, a violência, a inveja, essas coisas todas que sabemos para pelas estradas do diálogo encontrarmos as pontes comuns a nós mesmos. As que nos abraçam, as que nos juntam, as que nos tornam uns mais perto dos outros. Porém, é pena que eu só tenha sonhado. Tão simplesmente isso.

Mas, como vou voltar a repetir, sonhar não faz mal. Um dia, um dia tudo será realidade e o País, então e finalmente, se cumprirá. 


E espero seja já em 2014.


Eduardo White, poeta moçambicano
30/12/2013

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