sábado, 24 de abril de 2010

Relatório sobre as injustas retaliações à confortável nudez



Moro numa rua sossegadíssima. Mesmo de dia é uma pasmaceira. Do lado de cá, uma fila de prédios de r/c mais dois pisos, só de habitação e sem nenhum tipo de comércio ou serviços, e do lado de lá são as traseiras do ciclo preparatório. Acresce que é uma rua que não vai dar a lado nenhum em especial, não serve de atalho para chegar a nada que interesse, em suma ainda é daquelas onde os cães correm atrás das motorizadas e das bicicletas. Que é o caso da minha Tufas, e entra já na história pois faz parte dela. Até porque é por uma birra dela que agora sofro as agruras de quer mãe quer filha estarem todas enxofradas comigo. Se me permitem continuo a contar.

Tenho horários irregulares onde se incluem os de sono: há alturas em que duas horas por noite são completamente suficientes. Não é actualmente o caso, que passo umas perdulárias seis a oito aninhado no vale dos lençóis (e de edredons, até há pouco tempo). Ora, esta noite, acordei pelas quatro e tal da matina e como estava bem desperto vim até à sala, fumar um cigarro e ver se adiantava mais alguma coisa ao livro em mãos. Acontece que a Tufas ouviu-me e foi ter comigo, sempre sequiosa duma festinha, quem sabe dum miminho para a boca se nos ver a comer seja o que for, e mais ainda do seu divertimento-mor que lhe faz arrebitar as orelhas mal ouve a palavra mágica: "rua"! Foi o que aconteceu. Ao vê-la toda dengosa a esfregar-se por mim, a trepar pelo sofá e a meter a cabeça em cima do livro, a pedir festinhas, tive o erro de lhe fazer uma promessa que, embora fosse para cumprir, foi enunciada à hora errada: «tá quieta que daqui a pouco levo-te à rua!...» À palavra mágica a cadelita variou e deu em dar pulos, em correr pela sala como se estivesse numa prova de obstáculos, enfim, ler assim tá quieto!... E lá a levei à rua.

Tanto vos esclareci a vós, que não conheceis a minha rua, quer àquelas que a conhecem tão bem como eu pois moram cá: já de dia é um lá-vai-um, quanto mais àquelas horas da madrugada. O camião do lixo até passa mais a rondar as seis. E portanto desci com a Tufas pela trela, para deixá-la dar uma voltinha no passeio e fazer um xixizinho. Não fechei totalmente a porta do prédio, para permitir recolher-me rapidamente se alguma alma por ali aparecesse àquelas horas impróprias. E no prédio tudo ressonava (menos eu e a Tufas). Correu tudo bem, primeira parte. Passou a correr mal quando calhou em conversa contar que a sortuda já tinha ido hoje duas vezes à rua, que além do passeio matinal da praxe dera uma voltinha de madrugada: estou ameaçado com incontáveis, e a pequenita até deu em escrever furiosamente uma sms, a contar "a última do pai" ao seu mais-que-tudo (já agora, é um grande fã meu). E porquê tanto burburinho? Eu conto, preparai-vos para solidariamente vos abismardes!...

Desde os primeiros tempos da Humanidade que durmo nu. Se não eu o-próprio, os meus ancestrais. "Um gajo" dorme nu, e pronto. Um gajo das Áfricas dorme nu e é assim. Coisa que nem se questiona, tal a vulgaridade da nudez nocturna. Quem me lê sabe que é assim. Vá lá que quando o frio aperta vista uma t-shirt, mas é a única coisa: dado o hábito, não consigo dormir com nada "em baixo", que me sinto apertado e é o cabo dos trabalhos, às voltas na cama, até desistir e numa fúria pontapeteada despir e calcar bem com os pés o que... me aprisiona. Como o Inverno já se foi há bué, é também há bué que na actual saisson durmo nuzinho da silva. Quando fui para a sala fui nu. Se a cachopa se levantasse eu ouvia-a com antecedência suficiente para sacar da estante um livro de arte e abri-lo. Isto não é da Joana, e há regras de pudor, há há.

Como estão a ver, e certamente a concordar, foi com naturalidade prática que realizei o desejo da Tufas e levei-a a dar uma voltinha no passeio em frente ao prédio. Pela trela, até. Eu, nu, de óculos escuros e com uma cadela pela trela. De óculos escuros porque os outros estavam no quarto e não me apeteceu lá voltar, até que a cadelita estava impaciente a olhar para mim e para a porta. Recapitulo: moro numa rua onde só passam os que lá moram e pouco mais, e àquela santa hora toda a gente ressonava. O barulho começava até no meu prédio, seis apartamentos dos quais dois vagos, e mesmo assim nas escadas ouve-se a orquestra dos residentes até, vá lá, pelo menos às sete. Deixei a porta aberta para um qualquer imprevisto, e foi precaução excessiva pois não foi necessário recorrer a uma retirada forçada. Nada. Tudo correu bem! E pouco tempo estive no passeio, que me deu o frio em zonas ainda não aclimatadas e tive receio de me constipar: eu sou um gajo previdente, precavido! Responsável!

Sinceramente não entendo porquê aqueles olhares, porquê o lamento da mais velha e a incredulidade da mais nova, não sei porque é que, hoje, se quiser jantar «que o faça eu». Mais outras represálias que até receio supor, que lhe vi o olhar. Só a Tufas me entende, tout court isto aqui na minha rua é desgraçadamente assim!

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